Parmênides de Eleia, filósofo pré-socrático do século V a.C., propôs uma visão radical sobre a realidade. Em seu poema Sobre a Natureza, ele descreve dois “caminhos” de investigação: o Caminho da Verdade, acessível apenas pela razão, e o Caminho da Opinião, baseado nas aparências dos sentidos. Para Parmênides, o Ser é uno, imóvel e imutável, enquanto a multiplicidade e o movimento percebidos pelos sentidos são meras ilusões. Em suas próprias palavras: “Por outro lado, o ser é uno, indivisível, imóvel, verdadeiro, ao passo que as coisas advindas dos sentidos são múltiplas…”. A verdade fidedigna está além da experiência sensorial, e somente o pensamento puro conduz ao conhecimento genuíno, pois pensar e ser são a mesma coisa.
Na era atual, em que sistemas de inteligência artificial (IA) tentam entender o mundo por meio de dados e algoritmos, as ideias de Parmênides ganham nova relevância. Como construímos, organizamos e validamos o conhecimento em computadores? Quais são as garantias de que a IA capta uma realidade consistente, em vez de iludir-se como os sentidos humanos? Este artigo explora a ontologia de Parmênides (o caráter do Ser) e sua crítica às aparências, correlacionando-a com práticas modernas de engenharia de software e IA. Veremos como esses conceitos podem guiar, ou advertir, o desenvolvimento de modelos de dados, aprendizado de máquina e decisões algorítmicas.
Ontologia do Ser e Modelagem de Dados
Parmênides inaugurou o que seria chamado de ontologia: o estudo do Ser enquanto realidade fundamental. Ele afirmava que existe apenas o Ser verdadeiro, e que ele não pode nascer nem morrer, não pode ser dividido nem mudado. Em termos práticos, o Ser parmenidiano é uma unidade única e coerente. Essa ênfase na consistência tem paralelo na modelagem de conhecimento em sistemas de IA: para que um computador “entenda” um domínio, definimos uma ontologia de dados, isto é, um arcabouço formal de conceitos e relações. Em ciência da computação, uma ontologia é um modelo de dados que representa um conjunto de conceitos dentro de um domínio e os relacionamentos entre estes. Em IA, ela serve como um mapa de conhecimento que descreve entidades, atributos e conexões para permitir que máquinas processem o significado dos dados. Por exemplo, em uma ontologia médica, definem-se conceitos como Doença, Sintoma e Tratamento e suas relações (por exemplo, Febre é sintoma de Gripe). Esse modelo estruturado ajuda algoritmos a inferir, a partir de dados específicos, conclusões semanticamente corretas.
Assim como Parmênides sustentava que o Ser é uno e imutável, boas ontologias tentam capturar os conceitos essenciais de um domínio de forma lógica e consistente. Em uma ontologia, as categorias são pensadas de modo hierárquico e preciso. Ontologia é um conjunto hierárquico de conceitos e categorias, junto com suas propriedades e as relações entre eles. Essa definição (de Nicolas Fekos, sobre IA e educação) ecoa o esforço de Parmênides: alcançar uma descrição fundamental da realidade, ainda que aqui do ponto de vista computacional. Em IA, pesquisadores como Stuart Russell e Peter Norvig sublinham que representar o mundo requer descrições formais (lógicas) que permitam raciocínio sobre os dados. Tom Gruber, por exemplo, resume a ontologia computacional como uma descrição de conceitos e relacionamentos que devem ser considerados por um agente ou por uma comunidade de agentes. Ou seja, em ambos os casos, filosofia ou engenharia, busca-se definir o que “realmente existe” no domínio modelado, de modo claro e não-contraditório.
Aplicações práticas da ontologia em IA incluem a Web Semântica e grafos de conhecimento. Por exemplo, o Google utiliza um Knowledge Graph (grafo de conhecimento) para associar termos e entidades em pesquisas, permitindo entender que “Paris” pode ser cidade ou pessoa, conforme o contexto. Isso é análogo à exigência parmenidiana de não confundir “o que é” com “o que não é”: uma ontologia bem definida separa claramente as entidades relevantes (o Ser) de meras aparências. Em resumo, assim como Parmênides demanda uma descrição unificada e estável do Ser, os engenheiros de software criam modelos de dados e ontologias formais para que sistemas de IA possam raciocinar sobre o mundo de forma consistente.
A Verdade e o Aprendizado Supervisionado
No poema de Parmênides, após aprender sobre o Ser, o iniciando recebe uma instrução programática: ele deve aprender tudo, tanto o coração inabalável da verdade fidedigna, quanto as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína. Em outras palavras, distinguir a verdade (aletheia) das opiniões ilusórias (doxa) dos mortais. Essa distinção faz pensar no aprendizado de máquina supervisionado, onde se tenta ensinar um modelo usando dados rotulados, verdadeiros, em contraposição a ruídos ou erros nos dados. No aprendizado supervisionado, os dados de referência ou ground truth são conjuntos de exemplos verificados que servem de padrão para treinar o algoritmo. A ground truth representa a resposta correta que guia o treinamento e validação de modelos de IA. Podemos ver aí um paralelo: assim como Parmênides indica que devemos confiar apenas na resposta correta, a Razão, e não nas opiniões enganosas dos sentidos, no aprendizado supervisionado buscamos que o modelo aprenda a partir de dados rotulados fiéis à realidade.
Entretanto, esse processo depende crucialmente da qualidade dos dados. Se os rótulos, a verdade fundamental, forem imprecisos ou enviesados, o modelo aprende um padrão falso. Se anotações incorretas são fornecidas, o modelo não aprende os padrões corretos e isso pode levar a previsões falsas. Isso equivale a cair no caminho do Não-Ser: alimentar o sistema com informações que não correspondem ao Ser real. Em outras palavras, no lugar de conhecer a realidade verdadeira, o algoritmo passa a reproduzir as ilusões do conjunto de dados. Esse problema é análogo ao do viajante sensato na alegoria de Parmênides: ele foi advertido a não seguir o caminho que postula o não-ser (o que não existe) porque não poderás conhecer o que não é. Um modelo de IA mal treinado está essencialmente fazendo isso, tentando inferir algo sobre o que não corresponde à realidade, o que leva a conclusões enganosas.
Por isso, na engenharia de software de IA há um esforço constante para coletar dados de alta qualidade e rotulá-los corretamente, aplicando validação cruzada e triagem de viés. Autores de IA contemporâneos enfatizam a importância da interpretabilidade e explicação dos modelos justamente para assegurar que o que foi aprendido reflita algo real e consistente. Em resumo, assim como Parmênides exige pensamento coerente (o mesmo é pensar e ser) para atingir a verdade, o aprendizado supervisionado exige rótulos precisos e raciocínio estatístico correto para que o conhecimento do modelo se aproxime do Ser dos dados. Quando isso falha, entramos no domínio da opinião errônea, do caminho do Não-Ser, cujos riscos epistêmicos veremos a seguir.
O Caminho do Não-Ser e os Riscos Epistêmicos da IA
Parmênides afirmava que o Caminho do Não-Ser conduz inevitavelmente ao erro: os sentidos nos enganam, criando aparências enganosas. No poema, a divindade adverte que não separarás o Ser de sua continuidade nem dispersando-o por todo o lado segundo a ordem do mundo, isto é, não se pode imaginar o Ser mudando ou sendo múltiplo. O mundo cotidiano dos mortais, repleto de mudança e variedade, é para ele um show enganoso. De fato, Parmênides instrui a julgar a realidade pela razão e não confiar nos sentidos, concluindo que a realidade verdadeira é algo totalmente diferente do mundo no qual cada um de nós supõe viver, um mundo que é uma farsa enganosa. Essa visão atenua as bases filosóficas dos riscos epistêmicos na IA moderna: e se a tecnologia estiver operando sobre ilusões dos dados?
Um exemplo claro disso são os ataques adversariais em aprendizado de máquina. São pequenas perturbações imperceptíveis para humanos (como mudar alguns pixels de uma imagem) que fazem um classificador de visão computacional rotular erroneamente um objeto. Esses ataques são como verdadeiras ilusões de ótica para a IA: ao adicionar ruído quase invisível, um sistema treinado pode ver um rifle como um helicóptero. Para nós humanos a imagem ainda lembra uma arma, mas para o algoritmo é um carro-chefe, dando a impressão de que ele alucina o objeto. Esse fenômeno ilustra bem a advertência parmenidiana: os sentidos, como a visão processada, podem nos enganar, e da mesma forma o sentido artificial dos algoritmos pode ser iludido. O próprio algoritmo está vendo padrões nos dados que não têm significado real para nós, tal como Parmênides diria que os sentidos veem multiplicidade onde só há unidade.
Outro sintoma são as chamadas alucinações da IA em modelos de linguagem e visão. Um Large Language Model (LLM), por exemplo, pode gerar texto fluentemente, mas inventar fatos ou referências inexistentes, criando respostas que não fazem sentido ou são totalmente imprecisas. Isso pode ser comparado a ver figuras nas nuvens: o modelo vê padrões que não existem na realidade dos dados. As causas apontadas incluem viés ou lacunas no treinamento e complexidade do modelo. Em termos parmenidianos é como se o algoritmo estivesse seguindo o Caminho da Opinião: baseando-se em projeções internas, muitas vezes sem verificação, e criando verdades fantasiosas. Essas alucinações são semelhantes à quando enxergamos rostos nas rochas, são interpretações equivocadas causadas por distorções ou insuficiências nos dados.
Esses problemas não são meros detalhes teóricos: têm implicações práticas graves. Predições incorretas podem levar a diagnósticos médicos falhos, filtros de spam defeituosos, desinformação via chatbots etc. Quando um modelo de IA é treinado em dados enviesados ou parciais, ele tende a reforçar esses vieses: pode alucinar padrões ou funcionalidades que reflitam esses vieses. Ainda, ataques deliberados, por exemplo, adulterar inputs, podem fazer com que sistemas de segurança automática falhem exatamente quando deveriam vigiar, como um carro autônomo ignorar um sinal de pare adulterado. Em todos esses casos, há um paralelo direto com a crítica parmenidiana: confiar cegamente em percepções, ou dados, sem crítica racional pode conduzir a um conhecimento falso.
Assim como Parmênides adverte que pensar no Não-Ser é impossível e levará a contradições, a IA enfrenta sua própria aporia (estado de dúvida ou bloqueio intelectual quando a razão não consegue encontrar uma solução consistente para um problema). Por um lado, precisa modelar o mundo tal como aparece, plural e mutável, mas, por outro, essas aparências podem não corresponder a uma Verdade estável. A filosofia parmenidiana sugere cautela e busca de invariantes. Na prática de engenharia, isso se traduz na validação rigorosa dos modelos, uso de raciocínio simbólico quando possível e monitoração contínua dos sistemas. Por exemplo, treinar com adversarial training (auditorias de viés) são formas de recusar o caminho do falso e tentar corrigir o modelo. O objetivo é aproximar o comportamento do algoritmo do caminho da Verdade, aquele que Parmênides apontaria como intelectualmente confiável, evitando que ele se perca em aparências enganosas.
Conclusão
A filosofia de Parmênides, embora milenar, coloca questões essenciais para a IA contemporânea. Sua insistência de que pensar e ser são a mesma coisa e que somente a razão revela o real ecoa na necessidade de modelos de conhecimento claros e consistentes em inteligência artificial. Ao criarmos ontologias, buscamos uma visão “monista” do domínio: estabelecer um Ser computacional coerente, em vez de abraçar a multiplicidade caótica dos dados crus. Do mesmo modo, o aprendizado supervisionado se apoia na chamada verdade fundamental dos rótulos, ciente de que rótulos falhos nos lançam no engano. E quando sistemas de IA são iludidos por dados enviesados ou manipulados, vemos um paralelo moderno à advertência parmenidiana contra a confiança nos sentidos.
Em suma, Parmênides nos convida a refletir sobre os caminhos que traçamos no desenvolvimento de software e IA: devemos almejar o coração inabalável da verdade, usando lógica e modelos formais, ao mesmo tempo em que não perdemos de vista que nossos sentidos digitais podem falhar. A crítica a ilusões sensoriais do passado se traduz hoje na vigilância contra vieses algorítmicos e alucinações da IA. Combinar a criatividade dos algoritmos modernos com o rigor filosófico de Parmênides é um desafio provocador. O mesmo é pensar e ser, ou seja, todo modelo computacional deveria pensar (raciocinar) de forma compatível com o que é no mundo que modela. Seguindo essa perspectiva, engenheiros de software e pesquisadores de IA podem desenvolver sistemas que, embora alimentados por dados mutáveis, se aproximem cada vez mais do Caminho da Verdade, minimizando os perigos do Caminho da Opinião e construindo um conhecimento artificial cada vez mais sólido.
Referências
- Trechos do poema de Parmênides são adaptados da tradução de José Gabriel.
- Paulo J. Miranda, Heráclito responde a Parmênides (2018).
- Conceitos de ontologia em IA: Data Science Academy (2025).
- Nicolas Fekos (Medium, 2017).
- Fundamentos de ground truth em ML: IBM Think (2024).
- Sobre ilusões e ataques em IA: Wired (2019).
- Stanford Encyclopedia of Philosophy – Parmenides.
Top comments (2)
Such a sharp analogy - love how you mapped Parmênides to modern AI risks. Do you think it's possible for real-world ML systems to ever truly reach that ideal 'Caminho da Verdade'?
Thanks! In practical terms, real-world ML systems are inherently probabilistic and data-driven, so they will always operate closer to Parmênides' Caminho da Opinião (Doxa). Absolute, context-free truth (Caminho da Verdade) is philosophically unattainable for them. What we can aim for is reducing bias, improving explainability, and aligning outputs as close as possible to rational, consistent reasoning—but always within epistemic limits.